Nos últimos meses, a expressão “OAB da medicina” passou a aparecer em todo lugar. O Exame Nacional de Proficiência em Medicina, o Profimed, avançou no Senado como condição para que o médico recém-formado possa se registrar e atuar, reacendendo a discussão sobre a qualidade da formação em saúde no Brasil. Olhando para isso da cadeira de quem está há quase dez anos no ensino superior e coordena um curso de Educação Física, é impossível não fazer o paralelo: será que também precisamos de algo parecido na nossa área?
Quem trabalha em faculdade sabe que, por trás da explosão de cursos, há uma realidade bem menos bonita do que os folders de vestibular. Temos formações muito boas, sérias, com professores experientes, pesquisa, extensão, prática bem estruturada. E temos também o outro extremo: turmas lotadas, pouco contato real com serviço, pouco diálogo com a rede de saúde e com a escola, pouco preparo para lidar com populações vulneráveis. Na medicina, o Profimed surge, em parte, como resposta a esse incômodo: a ideia de que o diploma, sozinho, não garante que o egresso tenha o mínimo necessário para atender alguém com segurança.
Se trouxermos essa conversa para a Educação Física, a pergunta pega fundo. Hoje, o profissional da área está presente em programas públicos de atividade física, projetos de prevenção, ações em Unidades Básicas de Saúde, NASF, clínicas, academias, escolas. O Senado já reconheceu, em sessão temática, que a Educação Física é ferramenta importante de saúde pública e inclusão. Ou seja: não estamos falando apenas de “malhar e emagrecer”; estamos falando de gente com hipertensão, diabetes, dor crônica, doenças cardiovasculares, idosos frágeis, crianças em situação de vulnerabilidade. Nesse cenário, faz sentido discutir um parâmetro nacional mínimo para quem vai atuar com esse público.
Ao mesmo tempo, não dá para ignorar o contexto social. A expansão do ensino superior brasileiro, sobretudo privado, colocou milhões de pessoas na universidade, onde muitas delas primeiras da família a chegar lá. Em Educação Física, isso é muito visível: alunos que trabalham o dia todo, vêm de escolas com base frágil, pegam ônibus lotado para chegar à aula. Criar um exame nacional sem mexer na raiz do problema, com critérios frouxos para abertura de cursos, fiscalização insuficiente, pouca consequência prática para instituições que entregam formação ruim, seria empurrar a conta para o elo mais fraco: o estudante. Ele investe tempo e dinheiro em um curso que o Estado autorizou, se forma, e depois descobre que, na prática, o sistema deposita sobre ele a responsabilidade por todas as falhas anteriores.
Há também uma diferença de peso entre medicina e Educação Física que não pode ser ignorada. A medicina tem uma longa tradição de organização, residências médicas estruturadas, forte integração com grandes hospitais, grande capacidade de pressão política para construir exames como Enamed e Profimed em diálogo direto com MEC, conselhos e Ministério da Saúde. A Educação Física, apesar de ser citada em debates oficiais como peça importante para prevenção de doenças e inclusão social, ainda disputa espaço como profissão da saúde e luta para se consolidar nas redes de atenção. Importar o modelo da “OAB da medicina” sem adaptar à nossa realidade pode gerar distorções e injustiças.
Por outro lado, fingir que está tudo bem também não é honesto. Quem está no dia a dia de laboratório, estágio e sala de aula sabe que há egressos saindo sem dominar conceitos básicos de fisiologia do exercício, prescrição segura, ética, primeiros socorros. E isso não é um detalhe: pode significar agravar a condição de um cardiopata, sobrecarregar uma articulação lesionada, deixar passar sinais de alerta em uma aula coletiva lotada. A sociedade tem o direito de esperar que qualquer profissional que se apresenta como “da saúde” – médico, fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo, profissional de Educação Física – tenha um mínimo de competência técnica e responsabilidade.
Então, precisamos de uma “OAB da Educação Física”?
A resposta, ao menos do ponto de vista de quem escreve, é: precisamos de algo mais amplo do que apenas uma prova. Precisamos de critérios mais rígidos para abrir cursos, de avaliação contínua séria, de coragem para fechar ou reestruturar o que não funciona. Precisamos de estágios e parcerias com serviços de saúde, escolas e projetos sociais que coloquem o estudante frente a frente com a realidade do país. Precisamos de políticas de apoio que ajudem o aluno a chegar ao final do curso com condições reais de competir em qualquer exame que venha a existir.
Um exame nacional pode fazer parte desse pacote? Pode. Mas ele não pode ser tratado como solução mágica. Se vier, que seja construído com participação efetiva da categoria, das universidades, dos serviços, dos conselhos, e levando em conta as especificidades da Educação Física: atuação em saúde, educação, esporte, lazer, alto rendimento, projetos sociais. Que seja um instrumento para qualificar a formação e proteger a população, e não apenas mais um filtro excludente.
No fim das contas, a pergunta do título, não é convite a uma resposta binária, sim ou não. É um chamado para que a área assuma, de vez, o lugar que já ocupa na prática: o de profissão que lida com saúde, com corpos reais, com histórias de vida concretas. Se vamos ou não chegar a um exame nacional, é algo que ainda está em aberto. Mas encarar o debate, com responsabilidade e sensibilidade social, já é um passo importante que não dá mais para adiar.



